
Se alguém me dissesse, dez anos atrás, que eu me reinventaria do outro lado do Atlântico, eu teria soltado uma gargalhada. Mas a vida, como bem sabemos, adora nos pregar peças.
Cresci em Lisboa, entre vielas onde todo mundo conhecia todo mundo, e onde o padeiro sabia meu nome antes mesmo de eu aprender a soletrá-lo. Estudei Jornalismo sonhando alto — queria viajar, contar histórias do mundo real, fazer diferença. Mas acabei presa atrás de uma mesa, cobrindo inauguração de supermercado e congestionamento em hora de pico.
Foi então que recebi uma proposta inesperada: trabalhar como correspondente em São Paulo. Aceitei sem pensar duas vezes, achando que estava pronta para o desafio. Mal sabia eu que o maior desafio não seria profissional, mas pessoal.
A chegada foi um soco no estômago. Eu achava que falávamos a mesma língua, mas bastou o primeiro “beleza?” para eu perceber que estava completamente por fora. Pedi um “bica” na padaria e o atendente só levantou a sobrancelha. Era como se eu estivesse num universo paralelo — parecido, mas com códigos próprios.
Nos primeiros meses, me senti uma estranha no ninho. Chorei no chuveiro mais de uma vez. Não entendia as piadas, tropeçava nas palavras, e por dentro pensava: o que é que eu tô fazendo aqui? Mas eu sou teimosa por natureza. E aos poucos, fui me ajeitando.
Comecei a prestar mais atenção nas pessoas do que nas manchetes. Fiz amizade com a moça do mercadinho, com o porteiro do prédio, com a colega da redação que me ensinou o que era “ficar de boa”. Um dia, fui convidada pra contar minha experiência num podcast. Achei que seria só um bate-papo… e acabou mudando minha vida.
Hoje, deixei as redações formais e me tornei consultora em comunicação intercultural. Falo em eventos, produzo conteúdo sobre adaptação para estrangeiros e ajudo pessoas que estão passando pelo que eu passei — esse misto de deslumbramento e solidão que é morar fora.
Aprendi que pertencer não tem tanto a ver com geografia, mas com afeto. A gente pertence onde se sente vista, onde é chamada pelo nome, onde consegue rir das próprias gafes sem medo de parecer boba.
Se tem uma coisa que a vida me ensinou, é que coragem nem sempre grita. Às vezes, ela sussurra: vai, mesmo com medo. E foi assim, tropeçando no português do Brasil e me achando no meio do caos, que encontrei minha melhor versão.
📚 Vocabulário e expressões úteis (Português → Inglês)
Expressão / Palavra | Tradução |
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pregar peças | to play tricks (on someone) |
estar por fora | to be out of the loop / not understand |
estranho no ninho | a fish out of water |
chorava no chuveiro | cried in the shower (emotional overload) |
misto de deslumbramento e solidão | mix of wonder and loneliness |
rir das próprias gafes | laugh at one’s own mistakes |
me ajeitando | adjusting / settling in |
gargalhada | loud laugh / burst of laughter |
✅ Quiz – Compreensão de Leitura (Nível C1)
1. Qual foi o principal desafio de Clara ao chegar em São Paulo?
2. O que melhor representa a mudança na carreira de Clara?
3. Segundo o texto, o sentimento de pertencimento para Clara está ligado a:
4. Quando Clara diz que “coragem nem sempre grita”, o que ela quer transmitir?
5. Que mudança de perspectiva foi essencial para Clara se adaptar?